Que posso fazer? É o vício dos telemóveis… O sol nasceu há pouco tempo. Ainda está frio, e a minha vontade é ficar debaixo do calor das mantas. Mas, é impossível pois um longo dia aguarda-me, alheio ao meu desejo.
É o vício dos telemóveis
Ao sair de casa à pressa, envolta na mala, no casaco que teima em cair, nas chaves que deixei na porta distraidamente, eis que surge o primeiro sinal de que afinal, já não estou propriamente a dormir. O telemóvel apita, ensurdecedoramente…
Cambaleando dou mais uns passos, tentando ignorar o toque irriquitante que me invade os ouvidos. Uma mensagem. Esboço um sorriso. É de um amigo muito especial. Enquanto vou lendo os vocábulos que ordeiramente se acomodam no visor do meu telemóvel, esbarro com uma conhecida que, por acaso, também vai para Lisboa.
Conversa vai, conversa vem e, chego à brilhante conclusão que a dita pessoa, continua a mesma fútil de sempre. Conta-me do seu novo e rico namorado e, cúmulo dos cúmulos mostra-me o último telemóvel que adquiriu. Diz ela, ser topo de gama. “É giro”- articulo, quase por favor.
Um aparelho quase igual aos outros, com uns botões todos redondinhos, um visor bem mais pequeno, com um formato bem mais dinâmico, que cabe no bolso de umas vulgares calças de ganga.
Quando entramos no barco, para iniciarmos a nossa travessia marítima sob o rio que banha Lisboa, sou invadida por uma mistura de sons, como se estivesse numa ópera na qual, os instrumentos e a voz, não são propriamente tenores ou líricos, e cujo palco não tem como característica a grandiosidade desse tipo de eventos, mas sim um conjunto de cadeiras já gastas que baloiçam, consoante os movimentos impulsivos da corrente.
Toda a gente fala, conversa, ainda que a disposição àquela hora da manhã, não seja a mais apetecível e acolhedora. Pelo menos, a minha. A sessão de sons, não termina aqui. Já afastada dos cheiros de nova riqueza da minha conhecida, entro no autocarro também ele, apinhado de gente.
A singularidade de um gesto. A mesma expressividade no rosto. A mesma pergunta primária. Novamente, o mesmo gesto. Isto é, abrir a mala para retirar o telemóvel ou o casaco, uma expressão surpreendida ou irritada, a típica pergunta “onde estás?”, esquecendo as regras da boa educação e, novamente o guardar sagrado do “bichinho de estimação”.
Após um longo e fatídico dia de trabalho, o trajecto é exactamete idêntico, ainda que a sinfonia de ondas sonoras, seja mais intensa e ampla, o que me desagrada particularmente.
Enfim, adiante. Estão duas raparigas à minha frente e, a de cabelos louros questiona a morena, sobre se o João, já lhe ligou. Com um cara visivelmente inconformada, esta responde um seco e quase sumido, “Não”.
Mas, a salvação deste descontentamento, está para breve, quando o telemóvel toca no instante seguinte, e a rapariga morena atende, em jeito de excitação. Incrível, o que um telemóvel pode proporcionar em nós, através de um simples toque, de meras palavras auditivas que o “bichinho” transmite.
Estou já perto do meu lar, doce lar. Que bom! O meu telemóvel, começa insistentemente a tocar. Atendo, e surge a voz de um senhor que não conheço de parte alguma.
Era engano. E eu, na minha inocência a pensar que era ele. O tal amigo especial. Isto para provar, que um simples telemóvel, topo de gama ou daqueles que estão em promoção, influenciam o estado de espírito e disposição das pessoas.
De uma palavra pode brotar a nostalgia, de outra a felicidade e de outra a irritação. Tudo isto, por meio de uma pequena máquina, aparentemente inocente e inofensiva.
O que é certo, é que quase ninguém já vive sem ele, quer seja para negócios, intimidade ou lazer. A sinfonia auditiva, pode irritar mas, a realidade é que o meu “bichinho de estimação”, contribui também, tal como os outros, para esta orquestra, sem maestro permanente.
Qualquer dia as pessoas deixam de ter animais de estimação em casa, para passarem a ter espalhados, por todas as divisões vários telemóveis, de cores diferentes, de redes diferentes e até com nomes diferentes.
Quem sabe quando chegará esse dia…Já agora e, como estou longe do meu bichinho, vou ver se alguém me ligou ou se mandou, uma daquelas mensagens profundas … Que posso fazer? É o vício do telemóvel…
Cronista da Mulher Portuguesa: Ana Amante