Finalmente referência aos sobredotados na legislação! A primeira nota é, sem sombra de dúvida, de regozijo. Quase 20 anos depois – a temática entrou em Portugal em meados dos anos 80 – há, pela primeira vez, coragem política para se utilizar a palavra sobredotado.
Os sobredotados na legislação
Pude, finalmente, de ler o ante-projecto sobre Educação Especial, emanado do Ministério de Educação há algumas semanas atrás. Embora a TSF me tivesse contactado para ouvir uma opinião – infelizmente, ligando-me na pior altura – às 8:20, os alunos a entrarem na sala de aulas, o corredor cheio de jovens a falarem alto, um barulho ensurdecedor – foi impossível o contacto.
A primeira nota é, sem sombra de dúvida, de regozijo. Quase 20 anos depois – a temática entrou em Portugal em meados dos anos 80 – há, pela primeira vez, coragem política para se utilizar a palavra sobredotado
A segunda, é todavia, de desalento. Lamenta-se que, apesar destes 20 anos de sensibilização e tentativa de mudança de mentalidades – recorde-se que nos Estados Unidos investigação sobre esta temática data dos finais do séc. XIX – os nossos legisladores tenham recuado ao início do século XX e incluam os sobredotados na Educação Especial e apresentem a definição de sobredotado com base em excepcionais (?!!?)capacidades de aprendizagem e no grau de maturidade. Porquê excepcionais?
De estranhar que, das entidades ouvidas aquando da elaboração do anteprojecto, não consta qualquer das 4 associações existentes em Portugal destinadas aos sobredotados. Nem a pioneira APCS, com cerca de meia dúzia de anos de experiência, devido ao interregno nas actividads, entre 1988 e 2000, nem o CPCIL, que, persistentemente, contra ventos e marés, trabalha nesta área interruptamente desde 1989, nem a APEPICT com créditos, provavelmente mais fora do país, desde a sua fundação 1995, nem a mais jovem, mas quiçá com mais possibilidades de estruturação e intervenção, a ANEIS, fundada em 1999.
A referência a sobredotados nesta legislação aprovada, enferma de actualização de conceitos. Os sobredotados aparecem como que metidos a martelo, como uma espécie de rouge excessivo e lábios encarnados vivos em face encarquilhada. Quer parecer inovador com a pincelada dos sobredotados mas o documento é totalmente destinado aos deficientes.Uma versão maquilhada do DL 319/ 91 que revoga.
Naturalmente que todos os que se preocupam com os sobredotados, se congratulam com este documento, aceitando as migalhas e tentando do trapo roto fazer algo de útil (tal como acontecia com o referido decreto revogado).
Os alunos sobredotados em Portugal
Sobre este ante-projecto, unicamente na perspectiva dos alunos sobredotados, apraz-me considerar o seguinte:
Inclusão dos sobredotados na Educação Especial. Em muitos países concluiu-se que a inclusão dos sobredotados na educação especial era contraproducente, porque a expressão educação especial ficou demasiado conotada com deficiências.
E deixemo-nos de eufemismos, sejamos directos mas respeitosos, pois se hoje somos não-deficientes, amanhã poderemos sê-lo, e mais do que nunca, temos plena consciênca disso – não tenhamos, portanto, medo da palavra “deficiência”.
Desde cedo existiu o estigma do “coitadinho” e tem havido pouca preocupação em se eliminar esse preconceito, pelo que persiste. Nas escolas a simples menção de que um aluno foi indicado para ir ao “psicólogo” deixa os colegas a olhá-lo de lado, os pais em sobressalto e o próprio inferiorizado, quase sempre relutante. É uma realidade que convém assumir.
A atitude dos professores é felizmente, um pouco diferente. A sugestão da procura do psicólogo, pode residir na necessidade de ajuda de um técnico com informação complementar para se conseguir uma melhor compreensão do aluno e uma mais eficaz intervenção.
Não admira que as associações de pais, chamadas a opinar, facilmente concordem com a filosofia deste diploma e não rejeitem a ideia de que os sobredotados também são deficientes, mas “deficientes para cima”, como dizem, uma vez que, por força das legislações, são “empurrados” para avaliação psicológica como único caminho.
Há países cuja educação especial abrange os sobredotados, porque foi possível retirar esse negativismo da expressão. Isso não aconteceu em Portugal, e a forma como os sobredotados aparecem misturados com os deficientes neste documento (como água e azeite), irá reforçar a ideia, que alguns pais já possuem, que ter um filho sobredotado é uma desgraça, porque nem sequer há “tratamento” para eles.
Incidência nas excepcionais capacidades e no grau de maturidade. Os sujeitos abrangidos pelo documento são alunos, crianças e jovens em idade escolar, a integrar nas escolas numa perspectiva pedagógica. Todavia aqueles conceitos pertencem à psicologia.
A Psicologia, como ciência que pretende ser, é jovem de pouco mais de um século de idade, surgiu, como se sabe, na vertente em que hoje ainda é mais usada e que aqui mais nos interessa, paralela ao sistema educativo, para suprir, investigando e analisando, as dificuldades que algumas crianças apresentavam aquando da implementação da escolarização universal. Daí, que devido à sua formação inicial e à prática diária, os psicólogos enfermem do enviasamento para a deficiência.
Na sua formação de base quase nada lhes é ministrado na temática da sobredotação, daí que mais tarde na prática diária tendam a consolidar os conceitos/preconceitos/mitos de que o sobredotado tem que ser bom a tudo e portanto não precisa de ajuda, ou aceitando de forma, por vezes simplista, que a par das elevadas capacidades cognitivas existem graves problemas relacionais consigo próprios ou com os outros.
Desde os anos 80, que, nos EUA e depois na Europa, a detecção e sinalização de alunos sobredotados reside nos professores e nos pais, cabendo aos psicólogos dar o seu parece técnico complementar, cabendo-lhes a investigação e elaboração de teorias.
Fazer depender uma aceleração na aprendizagem unicamente de uma avaliação psicológica, através da aplicação de testes, que todos consideram pouco fiáveis, é empobrecer o sistema e passar aos professores um atestado de incompetência. Aos psicólogos a pesquisa, aos professores, a ação.
Ninguém, como os professores, com pelo menos 5 anos de docência, sabe quais as exigências curriculares, as competências médias, as capacidades médias que correspondem a um dado ano de escolaridade. O professor observa, avalia, trabalha com vários grupos de crianças e, em 5 anos, terá conhecido quase 100 crianças (no 1º ciclo), mais de 500 (5 turmas de 20 alunos por ano), não lidando apenas com uma criança de cada vez à luz dos conhecimentos teóricos, como acontecerá ao psicólogo, quer na escola quer no consultório.
Se a identificação passa por capacidades excepcionais (muito acima da média) de aprendizagem, quem estará em melhor posição que os professores para a detectar?
Por outro lado a insistência na maturidade (felizmente desapareceu o adjectivo “elevada”) dá origem a muitas dúvidas, confusões e demissões de decidir. Se por maturidade, apenas se quer dizer que a criança deve ter uma postura adequada de atenção, empenhamento e concretização e aquisição de autonomia e responsabilização, consigo própria e com os outros, essa “maturidade” não é visível a olho nu na na sala de aula onde também se podem testar várias situações, mais tarde a confrontar com testes aferidos?
No entanto, as escolas tendem a remeter a avaliação deste item para os psicólogos, por lhe darem um sentido mais abrangente.
O papel dos pais é justamente enfatisado neste ante-projecto. Assim, a prática possa corresponder a esta intenção e as escolas acolham e apoiem os pais nesta tarefa. Que sejam aceites e compreendidas as suas preocupações e pontos de vista sobre a sobredotação dos filhos, sem a crítica preconceituosa de que “para os pais todos os filhos são os melhores do mundo”.
Aceitando-se esta premissa, que em 20 anos tenho constatado como falsa, há que recolher dos pais a preciosa informação resultante duma observação em ambiente relaxado e multifacetado e, elucidar os pais da realidade de cada faixa etária, pois tendo um ou dois filhos não conhecendo um grande número de crianças como os professores, os pais não podem ter uma noção tão objectiva da média no desenvolvimento.
Espera-se que este diploma possa contribuir para que, na Formação de base de professores e psicólogos, a temática da sobredotação seja obrigatória, que seja fundamental na Formação em exercício dos professores para aprenderem sobre esta problemática, para os apetrechar com os mecanismos adequados a uma correta intervenção e finalmente para poderem elucidar convenientemente os pais.
Deseja-se que os pais tomem consciência dos direitos dos seus filhos, que, como alunos, já não precisam de “marcar passo” à espera dos colegas nem de “criar hábitos de facilitismo e preguiça mental” com a repetição exaustiva de temas, podendo acelerar na sobredotados e e saltar anos na escolaridade. Para isso não precisam de ser “génios” e muito menos terão “problemas de integração” se o processo for bem conduzido.
Manuela Freitas (CPCIL)